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A história que você nunca aprendeu na escola. Será?

15 de junho de 2010

O artigo a seguir foi escrito por Keila Grinberg, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) para o Ciência Hoje. Muito interessante e aborda o tema que defendemos aqui no blog, de que é preciso o historiador ocupar um espaço que hoje é preenchido por jornalistas. Ainda que não sejamos – como a autora também não é – contra jornalista escrever livros sobre história, consideramos que este só vende livro no lugar do historiador por absoluta negligência de uma ‘popularização’ da historiografia, uma comunicação mais efetiva e direta, sem o ranço academicista. Não se trata, como bem lembra Grinberg, de ‘simplificar’ as obras historiográficas, mas de torná-las mais acessíveis e interessantes aos leitores. É uma questão de redimensionamento de público. Os franceses conseguem, devemos conseguir também.

A TAL DA NOVA HISTÓRIA

A história do Brasil está na moda. Ou, pelo menos, na mídia. Na televisão, novelas e minisséries retratam diversos momentos do passado; nos cinemas, filmes com tramas históricas já são comuns; até CDs – estou lembrando do Noites do Norte, do Caetano  (2000), inspirado na obra de Joaquim Nabuco – incorporaram temas da história do Brasil em suas composições. Isso sem contar as agências de viagem, que começam a explorar o turismo eco-histórico, as exposições dos museus e centros culturais e as vitrines de livrarias, repletas de lançamentos, coleções e dicionários de história do Brasil. Até parece que, de repente, todo mundo passou a se interessar pela história do Brasil. O que é ótimo. Ainda assim, são comuns anúncios de livros e filmes do tipo “você vai conhecer a história que seu professor nunca lhe ensinou”. Quem, ao se deparar com uma novidade interessante na livraria, nunca pensou: mas por que eu nunca aprendi isto na escola? Pois bem, se você não frequenta mais a escola, aí vai uma novidade: é bem possível que seus filhos, ou os filhos de seus filhos, estejam familiarizados com aquele assunto sobre o qual você nunca ouviu falar. E mais: é provável que eles tenham aprendido isso justamente na escola.

Cerimônia de beija-mão na Corte de D. João VI, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em caricatura de 1826. Se antes o ensino da história era centrado em reis, rainhas e heróis, hoje as minorias e a realidade social são enfocados (autor desconhecido).

O maior exemplo é o best-seller Guia politicamente incorreto da História do Brasil (Leandro Narloch, editora LeYa, 2009), há vários meses na lista dos livros mais vendidos da revista Veja.

Sua sinopse começa assim: “Existe um esquema tão repetido para contar a história do Brasil, que basta misturar chavões, mudar datas ou nomes, e pronto. Você já pode passar em qualquer prova de história na escola.”

‘Guia politicamente incorreto da História do Brasil’, de Leandro Narloch: exemplo da moda de valorizar o que não seria ensinado nas escolas

A imprensa repetiu o bordão à exaustão: no blog da revista Claudia (11/11/2009), por exemplo, o texto sobre o livro começa avisando: “Esqueça tudo o que você aprendeu nas aulas de história. O guia politicamente incorreto da História do Brasil, do jornalista Leandro Narloch, traz novas versões para vários fatos esquecidos pelos livros didáticos”.

Noção simplista

Que não me entendam mal: em princípio, nada contra o livro. Não sou daquelas historiadoras que acham que a história pertence aos historiadores. Também não engrosso o coro – comum no meio acadêmico – de que livros de história escritos por jornalistas não prestam, pelo contrário.

Boa parte dos historiadores profissionais volta as costas para a divulgação do conhecimento histórico e deixa de aprender com aqueles que fazem textos de história serem agradáveis, saborosos – e até lidos! – sem que isso envolva a simplificação de suas análises.

Vejam o Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821 (Objetiva, 2005), um ótimo livro de história escrito por um jornalista, o australiano Patrick Wilcken.

A implicância aqui é com a estratégia de divulgação. Que, no caso, revela um grande desconhecimento acerca do ensino de história do Brasil nas escolas do ensino médio e fundamental, que passou, nas últimas décadas, por uma quase revolução – ainda que silenciosa.

A sucessão de nomes e datas pela qual o ensino da disciplina é conhecido ainda hoje foi substituída, nas décadas de 1960 e 1970, por um ensino que privilegiava as grandes transformações econômicas.

No primeiro modelo, reis e rainhas, grandes líderes e generais, eram responsáveis pelas mudanças no rumo das vidas de populações inteiras; no segundo, a luta de classes – o embate entre as formas da revolução e as forças da reação, como se dizia então – era considerada o motor do movimento na história.

Se esta última era uma história militante, que representava o combate ao regime militar no país para muitos docentes, do ponto de vista de quem aprendia elas eram, ambas as histórias, pouco interessantes – principalmente por serem distantes de seus referenciais cotidianos.

‘Navio negreiro’, tela de Johann Moritz Rugendas (circa 1830). A crueldade do tráfico de escravos certamente não era foco do ensino da disciplina um século atrás, o que ilustra as mudanças profundas na perspectiva histórica ao longo do tempo (reprodução: Wikimedia Commons).

Espaço para as minorias

De lá para cá, o ensino de história do Brasil continuou mudando. A partir do início dos anos 80, com o processo de redemocratização no país e a proliferação de cursos de pós-graduação, novos temas e objetos foram incorporados às discussões na sala de aula.

Influenciados pela historiografia francesa – a chamada Nova História – e pelos historiadores marxistas britânicos – principalmente através da história social do trabalho –, os professores começaram a ministrar aulas de história das lutas pelos direitos de cidadania, do movimento operário, das mulheres, dos negros e de outras minorias que perfazem a maioria da população deste país.

O ensino que antes vivia de heróis agora privilegia o homem comum, seus hábitos e crenças. O aluno que vivia distante da história que estudava agora pode se reconhecer, e a seus familiares, nos personagens que habitam seus livros.

Cultura popular e cotidiano, alguns dos assuntos que há algum tempo já são temas de teses acadêmicas, chegam aos livros didáticos e também ao mercado editorial.

Longe de mim pintar um mar de rosas acerca do ensino do que quer que seja – quanto mais do de história. Mas não se pode negar que a introdução de novos temas, objetos e abordagens, se não revolucionou o ensino da disciplina – ainda há muito o que fazer acerca dos métodos de se dar aulas, por exemplo –, alterou substancialmente o conteúdo das aulas.

A história do Brasil para quem estuda na escola hoje talvez ainda não seja a ideal. Mas é totalmente diferente daquela que se aprendia há tempos atrás. Ela não só é mais interessante, como é muito mais antenada nas questões de seu próprio tempo.

Por isso, ficar insistindo que aquele filme ou tal livro é bom porque conta a história “que ninguém ensina” só serve para desqualificar os historiadores, os professores e as próprias escolas. Infelizmente, este é um fenômeno que parece sempre estar na moda. E na mídia.

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